Na saudação pronunciada por ocasião da sua primeira Missa como Cardeal, o P. Stefano Martoglio, seu vigário, recordou, antes de tudo, a sua família...
Sou uma daquelas pessoas para quem as raízes são muito importantes. E em minhas raízes carrego um amor muito grande por minha família, por meus Pais – que já estão no Céu: minha Mãe há só três meses – por minhas origens como pescador, por ter nascido e sido criado numa vila de pescadores, pelas idas ao mar com meu pai, nos meses de verão, desde os treze anos...
O P. Martoglio enfatizou também “Filho de Dom Bosco por vocação”...
Não conhecia os Salesianos. Fui estudar com eles porque uma turista de 70 anos, que ao longo dos anos havia desenvolvido uma sólida amizade com meu pai, um dia lhe perguntou o que ele pensava sobre o meu futuro. Papai respondeu que eu seria pescador. Ela observou que eu era inteligente e que conhecia uns religiosos que atuavam na educação de jovens. Meus Pais responderam que não poderiam arcar com as mensalidades... Mas ela os tranquilizou: “Vocês vão ver, não vai ser tão caro!”. Assim, fui estudar com os Salesianos, a 200 quilômetros de casa.
E o que aconteceu após o ensino médio?
Eu já estava pronto para entrar na Faculdade de Medicina e Cirurgia. Sentia que a medicina era uma vocação... Acho que teria sido um bom médico de família! Mas ao mesmo tempo também senti a necessidade de refletir, porque gostara tanto dos meus anos com os Salesianos... Durante o último verão na praia, compartilhei estes questionamentos com os meus pais, pensando em tornar-me religioso salesiano. Papai e mamãe me disseram: “Filho, a vida é sua. Se isso vai te deixar feliz, vá… E não se preocupe conosco!”.
No momento da proposta daquela turista, no ‘sim’ dos meus pais, no momento da opção religiosa e no outro ‘sim’ dos meus pais... não posso deixar de ler duas grandes intervenções de Deus no nascimento e na realização da minha vocação!
Podemos falar sobre o seu brasão?
Na primeira seção há a figura, muito querida de nós, Salesianos, de Jesus Bom Pastor. Para nós, o Bom Pastor encarna o DNA de um salesiano. Na segunda, está o monograma MA - Maria Auxiliadora - . Como Dom Bosco, nós, Salesianos, imploramos sempre a Sua proteção. Na terceira, vemos a âncora, que para mim tem um duplo significado: por um lado está no escudo salesiano a representar a esperança e a solidez que os Salesianos devemos possuir; por outro, a âncora remete às minhas raízes de... pescador, à minha Família, à minha Aldeia.
O brasão também traz um lema: Sufficit tibi gratia mea…!
Foi uma escolha totalmente pessoal, porque expressa o que sinto e como me senti durante toda a minha vida até hoje. Como salesiano, vivi o que eu nunca teria escolhido: Inspetor, também na Argentina por alguns anos, depois Reitor-Mor... Agora vivo o cardinalato por obediência a uma decisão do Santo Padre. Como disse o Senhor Jesus a Paulo: É-lhe suficiente a minha graça.
E exatamente no período da Argentina, de 2009 a 2013…
Pois é, ali conheci o Papa Francisco quando ainda Cardeal-Arcebispo de Buenos Aires, nos anos 2009-2013, quando eu era Superior de uma Inspetoria na Argentina. Jamais considerarei esse conhecimento “antecipatório” uma como medalha de mérito. Meu relacionamento com o então Arcebispo de Buenos Aires era o de tantos outros, sacerdotes e religiosos, inclusive Provinciais. Contudo, para mim era sempre agradável recebê-lo todos os anos, no dia 24 de maio, quando ele vinha à Basílica de Santa Maria Auxiliadora, no bairro de Almagro: seus Pais tinham vivido nessa zona e ali Ele fora batizado.
Os jovens estão no centro do carisma salesiano. Depois de nove anos como Reitor, o senhor visitou quase 120 países. Existe algo comum a todos os jovens do mundo?
Sim. As culturas são diferentes, as línguas são diferentes, os ambientes de vida são diferentes. Se compararmos a vida de um jovem do Camboja, de um de Madri, de um terceiro jovem índio da tribo shuar do Equador..., a diferença é enorme. Mesmo num mundo como o nosso, que, faz anos, já foi definido uma como “aldeia global”. Contudo, depois de quase dez anos de encontros em muitos países, estou mais que convencido de uma coisa: todos os jovens do mundo, quando veem um adulto que se aproxima com um olhar de amizade e coração aberto, que se aproxima pensando no bem deles e para se colocar ao seu serviço, eles se revelam-se assaz acolhedores. Os jovens nunca fecham as portas: têm sempre um coração aberto.
Estou pensando nos muitos jovens africanos: por que emigram? Não existem possibilidades reais de colaboração no desenvolvimento dos seus países?
Estive muitas vezes na África como Inspetor, por exemplo, no Senegal. Qual foi e continua sendo nossa intenção? Proporcionar aos jovens uma formação adequada em três anos de estudos, poder dar, a cada um deles, uma caixa com equipamentos para que possam trabalhar, para que lhes seja possível levar uma vida digna, ganhar o sustento, manter contato com sua família. Já o fizemos, o fazemos e continuaremos a fazer. Na verdade, também há muitos que não emigraram porque, graças a nós - e a tantos outros que trabalham como nós - encontraram uma situação honrosa.
No entanto, se pensarmos em nível africano geral, a situação é diferente.
Precisamos de ajudar o desenvolvimento de muitos estados africanos de forma mais incisiva. Os investimentos feitos, por exemplo, pela União Europeia, dando rios de dinheiro a um ou outro país para construir estruturas que atrasem a imigração - em suma, acampamentos de migrantes - estão fadados ao fracasso. Porque, mais cedo ou mais tarde, os hóspedes irão embora, consideradas as previsíveis condições de vida num acampamento. Por outro lado, a União Europeia deveria considerar com mais atenção e seriedade os investimentos na formação profissional dos jovens, financiando a rede daqueles que já trabalham neste setor (e repito: não somos só nós; há já ali muitas outras instituições!). Este é, em minha opinião, um investimento que daria muitos bons resultados!
Passemos à condição dos jovens europeus: a sua vida quotidiana é diferente da de muitos pares africanos; mas os problemas que enfrentam são também complexos e até dramáticos.
Para ter uma visão completa da complexa situação da juventude europeia de hoje, que pode então levar à perda de Fé, é necessário acrescentar um elemento essencial: temos de lidar com jovens frágeis, sim; mas geralmente muito mais instruídos do que as gerações anteriores ou, pelo menos potencialmente mais competente. Falam mais línguas e sabem se movimentar muito mais, são flexíveis graças também ao uso de novas e preciosas ferramentas de conhecimento. E, no entanto, esta geração de jovens carrega uma pedra nos ombros: seu futuro...
Como eles poderão planejar suas vidas, se muitos vivem em condições precárias?
Pesquisas recentes apontam que a Espanha e a Itália têm uma idade média de emancipação da família entre 28 e meio e 32 anos. Todavia, aos 32 anos, homens ou mulheres, já não são mais considerados jovens! Ainda moram com os pais porque não têm como construir uma vida fora da família. É claro que não se trata apenas de uma questão de trabalho: também de sentido da vida. Às vezes é preciso fazer escolhas... Entretanto, se o futuro é incerto, a tendência é adiá-las... com a consequência que nos jovens, por exemplo, o sentido da maternidade e da paternidade se enfraquece.
Há outrossim o tema da guerra…
Esse tema me faz sofrer. Eu penso como o Papa Francisco e como outros que partilham suas ideias: estamos vivendo uma nova guerra mundial, mas em pedaços. Desenvolvi uma convicção ao longo de minha vida: nenhuma guerra faz sentido.
No debate público observa-se frequentemente que nem todas as guerras são iguais.
Repito: a guerra é um absurdo em si. Podemos debater sobre as falhas de um ou de outro, sobre quem iniciou e quem reagiu, sobre a ferocidade do fundamentalismo... Mas a questão (e observação) fundamental permanece apenas uma: quantas mortes já tivemos na Ucrânia, quantos soldados e civis ucranianos e russos? E quantas mortes de todas as origens e idades causamos na Terra Santa, com o terrorismo do Hamas e a resposta de Israel? Quantas mortes? Quantas? Milhares e milhares... Mas relembro que até mesmo uma única vida é sagrada.
Podemos realisticamente ter a esperança de que um dia as ‘espadas serão transformadas em arados’?
Sei que tudo o que fizermos pela paz nunca será demais. E acrescento: dói-me a ausência de uma ação mais firme, mais determinada, mais forte, em prol da paz por parte de muitos governos, por parte das superpotências, por parte de organizações internacionais. E quanto à propagação do terrorismo – nós, Salesianos, também sofremos com isso, sobretudo na África, com muitas vítimas – . Só posso reiterar: o terrorismo não tem justificativa. Nenhuma.
Para concluir: devemos investir muito mais: não em armamentos, mas em oferecer a todos a oportunidade de viver com dignidade nos seus países de origem, na África e fora dela. Caso contrário, as migrações se multiplicarão, tal como os dramas humanos frequentemente ligados a elas. Não há, portanto, tempo a perder: não invistamos em mísseis, mas em educação e em formação profissional dos Jovens, especialmente onde surge a escassez, que os impede de planejar um futuro de estabilidade.