Brasil – Entrevista do P. Justino Rezende: compromisso e responsabilidade com a Amazônia

(ANS ­ – São Paulo) – “Tratar da Amazônia, da ecologia e do meio ambiente na atualidade é mexer com temas espinhosos”, considera o P.  Justino Sarmento Rezende. Membro do povo Tuyuka, ele é salesiano sacerdote e integrou a Secretaria Especial do Sínodo para a Amazônia.

O P. Justino é mestre em Educação e doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e atualmente está na Missão Salesiana de Marauiá, no Alto Rio Negro – extremo noroeste do Amazonas. Nesta entrevista ao Boletim Salesiano, ele fala sobre ecologia integral, preservação da Amazônia, desenvolvimento sustentável e as lutas dos povos autóctones para se protegerem de graves ameaças, inclusive do avanço da COVID-19.

Desde a publicação da Exortação Apostólica «Laudato Si’» tem-se firmado o conceito de “ecologia integral”. O senhor poderia explicar o que significa pensar em ecologia de forma integral?

A minha leitura parte da compreensão dos meus ancestrais e avós dos povos originários do noroeste amazônico. Eu aprendi que a nossa vida humana está ligada a muitos seres visíveis e invisíveis que habitam em diversos mundos: mundo das alturas, isto é, o sol, a lua, as constelações, as nuvens, as chuvas, os ventos; mundo das águas: diversidade de seres vivos aquáticos; mundo da terra (chão de nossa vida): diversos tipos de florestas, serras, montanhas com todos os seres que vivem ali; mundo subterrâneo: tipos de terra, argila, pedras, diversos minérios, etc. Os nossos educadores nos ensinaram que a vida humana se relaciona com esses mundos e esses mundos e seus habitantes se relacionam com os seres humanos. Os nossos sábios entendem que o mundo é uma casa ritual (maloca). Nessa casa, todos têm lugar: crianças, adolescentes, jovens, mulheres, homens, mestres de danças e pessoas especializadas em cuidar do povo. Os mestres cerimoniais convidam para que todos os habitantes daqueles mundos aos quais me referi acima venham participar das cerimônias de uma casa ritual. Essa compreensão promove a responsabilidade individual e comunitária para respeitar os diversos mundos e seus habitantes, pois assim seremos respeitados por eles.

Nos meses de março e abril, houve um aumento das denúncias de invasão de terras indígenas, desmatamento e mineração ilegal na Amazônia. O que está ocorrendo na região?

Nós, povos originários do Brasil, há muitos séculos, desde que os colonizadores chegaram nessa terra, vivemos numa resistência contínua. Cada povo procura viver nos seus territórios tradicionais nas várias regiões do Brasil. Os povos que estão mais nas regiões sul, sudeste, centro-oeste estão cada vez mais expostos a violência sistemática, são ameaçados diariamente, estão na luta contínua como comunidades, os seus líderes são assassinados sem dó. A ambição e a ganância das grandes empresas querem cada vez ocupar mais os territórios. Eu vejo essas realidades com muita tristeza. Despertam-me o sentimento de revolta por tantas injustiças cometidas. Para as regiões mais para o norte os mesmos problemas acontecem: ocupação dos territórios, ameaça e expulsão dos povos para implantação dos projetos de monoculturas, invasão de madeireiros e garimpeiros clandestinos e ilegais. Suas ações são legitimadas pelo discurso preconceituoso de governantes contra os povos originários.

A ambição desenfreada provoca esses tipos de invasões. O contexto atual da política brasileira expressa claramente o projeto de dizimação dos povos originários com as articulações para a anulação das terras demarcadas e em processo de demarcação. Vivemos então num clima de desamparo e incerteza. Há um desrespeito pelos artigos da Constituição Federal sobre os povos indígenas. As instituições eclesiais (como CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, e CIMI – Conselho Indigenista Missionário), as organizações dos povos originários e as organizações civis nacionais e internacionais que se comprometem em defender os povos originários são consideradas como instituições de esquerda, “comunistas”, inimigas do desenvolvimento do Brasil e do crescimento da economia. Diante desse contexto, a força maior é dos próprios povos originários e seus aliados que atuam em diversos setores da sociedade brasileira e em outros países para dar visibilidade aos problemas pelos quais passamos. Desta forma suscitam a solidariedade de diversas instituições.

Esses problemas estão relacionados ao avanço da COVID-19 na região amazônica? O que tem sido feito para proteger as populações indígenas e ribeirinhas em relação ao coronavírus?

A Covid-19 mostra a realidade nua e crua da política governamental com relação aos povos originários, que habitam em diversas regiões do Brasil e na Amazônia. Os problemas acima citados, como a invasão de territórios, ocupação, ameaças e assassinatos de lideranças, exploração de madeira e garimpos continuam acontecendo em pleno clima de proteção dessa pandemia nos territórios de muitos povos. Em algumas regiões esses mesmos agentes levaram o coronavírus para áreas indígenas. Diante da Covid-19 os próprios povos têm recorrido aos modos tradicionais de refugiarem-se nos lugares mais afastados de suas comunidades, aqueles que ainda têm a possibilidade de adotar essas práticas. Outra parcela da população, principalmente de quem mora nas pequenas cidades e grandes metrópoles, não tem condições para isso. Esses povos estão mais expostos a Covid-19. Aqui na região do Rio Negro (Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira) tem sido feito o trabalho de prevenção por meio de informação sobre ações a serem adotadas, porém, muitas pessoas não têm respeitado tais orientações.

Os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) e Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) não possuem políticas específicas diante da Covid-19, pois em diversos lugares não têm estruturas para o trabalho de prevenção eficiente e o cuidado dos infectados. O mais eficiente é empenharem-se com as comunidades onde atuam para o trabalho de conscientização sobre os perigos dessa pandemia. A atuação dos DSEIs e SESAI reflete a política de saúde nacional, com escassos recursos materiais e humanos. Torna-se mais grave quando imaginamos que as comunidades podem ser infectadas e os munícipios do Amazonas não dispõem de hospitais de grande porte. Os pequenos hospitais e Unidades Básicas de Saúde, quando existem, não dispõem de equipamentos apropriados para tratar essa pandemia. Enviar os pacientes para as metrópoles nesse momento significa transferir os pacientes para lugares onde os leitos e as UTIs já estão ocupados. Estamos numa situação difícil. Por isso, têm se intensificado o trabalho de conscientização das populações.

Em outubro passado, a Igreja realizou o Sínodo sobre a Amazônia, demonstrando sua preocupação com a região. Qual o significado desse sínodo?

O Sínodo da Amazônia surgiu como uma voz de esperança dos povos originários da Amazônia, principalmente. Desde o seu anúncio (2017) até a sua realização (2019), o Sínodo da Amazônia aconteceu em meio ao clima muito tenso e conflituoso com os governos nacionais devido ao fato de que tratava das realidades difíceis vividas pelos povos da Amazônia e em especial que trouxeram à luz os problemas sociais já apresentados acima. No interior da Igreja Católica também tivemos tensões, pois houve bispos e parcelas de cristãos católicos que se opuseram com unhas e dentes aos debates sobre as realidades da Amazônia, dos povos originários, dos ministérios ordenados.

No período de 6 a 27 de outubro de 2019 aconteceu a celebração do Sínodo da Amazônia, no Vaticano. Eu estava presente como um dos peritos do Sínodo. Todos os temas foram estudados, refletidos, discutidos e aperfeiçoados. Os padres sinodais, convidados e convidadas realizaram suas intervenções. Em diversos grupos menores foram aprofundados os temas e, finalmente, foi votado e aprovado o documento final. A realização do Sínodo da Amazônia foi uma celebração das diversidades de carismas, sonhos, medos, receios, dúvidas e esperanças. Digo que aconteceu sob as luzes do Espírito Santo, mas com a contribuição dos participantes que agiram a partir de suas experiências de vida, pastorais, missionárias, de estudos.

O Documento final foi entregue ao Santo Padre, Papa Francisco. Ele por sua parte elaborou a Exortação Apostólica Querida Amazônia, em fevereiro deste ano. Logo depois veio essa pandemia da Covid-19 e não foi possível fazer uma programação para concretizar as propostas aprovadas durante o Sínodo nem fazer a recepção da Exortação Apostólica no Brasil. No último dia do Sínodo da Amazônia foi constituído o Conselho Pós-Sinodal, por isso, creio que após o período do Covid-19 o trabalho será retomado. Eu acredito que contribuirá para a Igreja Católica na Amazônia e para os governos nacionais. Digo também que os trabalhos acontecerão em meio a diversas tensões, não tem como fugir disso. Assim, as pessoas crescem no diálogo, na paciência, na sabedoria.

Na opinião do senhor, o que os cristãos católicos e leigos da região amazônica podem fazer em defesa da ecologia e do meio ambiente?

Tratar da Amazônia, da ecologia e do meio ambiente na atualidade é mexer com temas espinhosos. Existe uma parcela de cristãos católicos aliada aos discursos do desenvolvimentismo e de quem compreende a Amazônia como uma grande despensa, como o grande território que deve ser explorado em suas riquezas para salvar a economia nacional e sustentar as grandes empresas internacionais. Outra parcela é aquela que vê a Amazônia como algo a ser defendido com tudo aquilo que ela representa: os povos originários, a ecologia e o meio ambiente; as cosmovisões dos povos originários sobre a Amazônia e os seres diversos que nela habitam. Também essa parcela entende que devem existir modelos de desenvolvimento sustentável que sejam capazes de ajudar nas necessidades básicas dos povos, sem grandes depredações, sem esgotamento das riquezas para que as futuras gerações usufruam do que a Amazônia oferece. A terceira parcela de cristãos católicos é aquela que não está muito preocupada com essas realidades. Como se pode pensar diante disso?

Um dos caminhos deve ser a educação escolar que leve em conta os temas da Amazônia, da ecologia, do meio ambiente, dos povos da Amazônia etc. Diante disso, surgem sérios problemas: quem elabora os livros didáticos? quais são os ensinamentos e as ideologias veiculados nesses livros? Pela minha leitura da realidade atual do Brasil e dos nossos governantes, existe um grande repúdio e rechaço com relação à visão de preservação e defesa da Amazônia, das florestas, das riquezas. Os cristãos católicos bebem dessas visões em instituições de educação. Em nível interno da Igreja (evangelização, catequese, pastorais, escolas e universidades católicas), esses temas são pouco trabalhados.

E como os cristãos católicos que estão em centros urbanos podem agir em defesa da ecologia e do meio ambiente?

Durante o período da preparação do Sínodo da Amazônia eu estive como assessor do Sínodo e participei de diversos eventos para repasse de conteúdos do Documento Preparatório e do ‘Instrumentum Laboris’. Eu vi como esses temas eram trabalhados e não trabalhados nas paróquias, dioceses, escolas e universidades. Às vezes falar da Amazônia, da ecologia, do meio ambiente, falar dos povos originários, quilombolas, ribeirinhos, era como se estivesse falando de temas que não têm nada a ver com a vida urbana.

Mas eu também vi que existem pessoas que assumem pra valer a defesa desses temas, e sem medo. Eu vi essa coragem em diversos eventos nas cidades pequenas, nas grandes cidades e em outros países.

Fui a muitos lugares onde os bispos, sacerdotes, religiosos e leigos se mostravam comprometidos com os temas, incentivavam os membros das comunidades a se envolverem. E em outros lugares eu via e sentia a frieza. Diante disso, entendo que há necessidade de sermos iniciados à visão de compromisso e defesa da Amazônia e seus habitantes. Precisará ser feito um trabalho gradual. Enfim, digo que esse tema não é para ser trabalhado a nível interno da Igreja Católica. É algo a ser assumido por todos os homens e as mulheres, independentemente de suas pertenças religiosas. Os cidadãos do mundo todo precisam se envolver nesse trabalho.

Fonte: Boletim Salesiano do Brasil

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